A moça que trabalha lá em casa não é de muitos dizeres, o que é desculpável vindo de alguém com sua história de vida. Seu silêncio passivo soa como uma auto defesa involuntária e inútil de uma presa aguardando a compaixão de um predador indeciso. Com muitos anos de casa ela adquiriu admirável personalidade no jeito discreto de tratar e um papel fundamental no cuidado de dois homens residentes, pai e filho.
Meu sentimento com relação a essa moça é praticamente o mesmo que reservo aos meus familiares, pudera, já se vão mais de quinze anos de convivência. Essa moça tem lá os seus cinquenta anos, sofre com dores nas costas, e veio do nordeste sem perspectiva nenhuma e com filho nos braços. Pode-se dizer que é uma vencedora, pois leva uma vida digna, mesmo ainda não tendo conseguido comprar a casa própria. Casou o filho, e cuida de outros parentes, Em quinze anos não me recordo de nenhum atraso ou falta. Ela acorda antes das seis.
A cumplicidade entre nossos problemas e conquistas é grande, mesmo que inconscientemente mantenhamos a distância que é de se esperar entre empregado e filho de empregador. Como a vez em que ela caiu num trote de sequestro por telefone. Acreditou que era a irmã sendo sequestrada do outro lado da linha, literalmente caiu no chão em prantos. Liguei na hora para um policial amigo meu e ele explicou que é um golpe recorrente aplicado por pessoas que muitas vezes estão dentro da prisão. Até ela acreditar nisso e desligar o telefone foi um transtorno psicológico grande para nós dois. Ou também da vez que eu tive desidratação total e desmaiei nu na frente dela, depois de quase não conseguir abrir a porta do banheiro.
Quando acontecem coisas boas também dividimos a alegria, sempre que alguém da família aparece na TV ela assiste conosco, ou quando alguém lança um CD ou escreve um livro, fazemos questão de dividir tudo isso. Quando volto de alguma viagem percebo que sinto saudades dela também, afinal o bem estar que ela proporciona há tanto tempo se tornou fundamental.
Certo dia ela olhava algo pela janela da sala. E perguntou se eu já tinha reparado que no prédio da frente havia plantas onde os passarinhos pousavam e também bebiam água de um bebedor. Eu disse que não tinha reparado ainda, e a partir dali comecei também acompanhar todo dia um pouco esses episódios, normalmente matutinos. Fiquei imaginando a importância desses detalhes que passam despercebidos, e que não dependem de instrução nenhuma para causar encantamento. Não me recordo de outra vez que ela tenha me chamado atenção para algo tão poético. Dias depois também meu pai me chamou a atenção que no mesmo andar dos pássaros nasceu um bebê, e o pai, ou o avô, sempre ficava segurando-o perto da janela. Passei também a acompanhar o crescimento da criança pela janela da sala. E foi assim durante algum tempo, os pássaros e a criança.
Mas minha cidade está em vias de crescimento desenfreado, acompanhando o bom momento do país e da descoberta de petróleo e gás nas profundezas do solo que nasci. Com isso uma grande parede de cimento frio foi erguida entre um prédio e outro, impedindo-nos de contemplar a janela lateral que nos fazia um afago na alma.
Está sendo construída uma escola de três andares do lado do prédio onde eu moro, o barulho da construção incomoda bastante. Em atitude positiva procuro pensar que entre a janela de onde moro com meu pai e a do bebê, das plantas e dos pássaros, haverá uma edificação escolar onde a vida também transcorrerá fluida e imprevisível, onde as crianças aprenderão muitas coisas que irão esquecer, mas que servirão de base para um dia conseguirem exprimir em palavras ou em arte emoções que não requerem nenhuma instrução para serem sentidas.
sexta-feira, 25 de novembro de 2011
segunda-feira, 31 de outubro de 2011
No Teatro da Vida
Depois de muitos anos de vivências somente no meio musical o destino me pôs em simbiose com o meio teatral. O teatro é como a música erudita, quem aprecia constantemente é um público seleto que quase sempre tem cultura e conhecimento. Há também pessoas que vão a uma peça porque querem ver algum ator específico, e nesse caso provavelmente esse ator já trabalhou em televisão.
Na minha experiência em particular tenho visto que o assunto quase sempre gira em torno de signos, relacionamento, corpo, trabalho (peças, castings, fotos, etc..), eventos e cultura em geral. É um meio competitivo como qualquer outro. Quando um elenco é selecionado a convivência torna-se inevitável e as personalidades obrigatoriamente se adaptam a fim de se extrair o que é necessário para dar vida às ideias sugeridas no texto em questão.
No decorrer o que se vê é algo interessante, uma dança tácita e cuidadosa onde os envolvidos fazem o possível para manter a civilidade e boa educação, mesmo havendo um clima competitivo (também resquício do processo de seleção) e de intensa energia que num primeiro momento não está muito bem canalizada. Ainda que nem todos trabalhem com os mesmos objetivos e enxerguem o significado do que é cultura de formas diferentes, há a certeza que algo interessante e construtivo está sendo feito.
O ator tem várias semelhanças com o músico no que diz respeito ao ego. Mas eles extrapolam na demonstração das emoções, obviamente buscando na realidade, material para usar em cena. Tudo é incrível e magnânimo para um ator iniciante e alguns deles conseguem fazer o que no fundo todos sentem vontade, mas não tem coragem. A observação desse talento de exagerar nos sentimentos que são comuns a todos nós, invariavelmente me leva a repensar o porquê do padrão vigente de comportamento na sociedade.
Não farei conjecturas do que nos impele a reprimir muito do que sentimos e não lutar pelo que acreditamos e/ou pelo que está errado no nosso planeta. Minha paciência para discursos vãos e revoltosos se esvaiu no início dos meus vinte anos, hoje prefiro tentar transformar de forma gradual e pacífica através do que faço e acredito, logicamente dentro do possível nesse mundo que já estava corrompido antes de eu nascer.
Dessa experiência nova procuro absorver essa atitude extrovertida essencial para os atores, que será imprescindível em novas empreitadas a que estou me propondo nessa fase da minha vida. Todo mundo tem um papel nesse mundo antagônico, somos protagonistas da nossa própria história e escolhemos o nosso roteiro dentro de normas pré-estabelecidas e traçadas por feitos de grandes e também de medíocres personagens.
Na minha experiência em particular tenho visto que o assunto quase sempre gira em torno de signos, relacionamento, corpo, trabalho (peças, castings, fotos, etc..), eventos e cultura em geral. É um meio competitivo como qualquer outro. Quando um elenco é selecionado a convivência torna-se inevitável e as personalidades obrigatoriamente se adaptam a fim de se extrair o que é necessário para dar vida às ideias sugeridas no texto em questão.
No decorrer o que se vê é algo interessante, uma dança tácita e cuidadosa onde os envolvidos fazem o possível para manter a civilidade e boa educação, mesmo havendo um clima competitivo (também resquício do processo de seleção) e de intensa energia que num primeiro momento não está muito bem canalizada. Ainda que nem todos trabalhem com os mesmos objetivos e enxerguem o significado do que é cultura de formas diferentes, há a certeza que algo interessante e construtivo está sendo feito.
O ator tem várias semelhanças com o músico no que diz respeito ao ego. Mas eles extrapolam na demonstração das emoções, obviamente buscando na realidade, material para usar em cena. Tudo é incrível e magnânimo para um ator iniciante e alguns deles conseguem fazer o que no fundo todos sentem vontade, mas não tem coragem. A observação desse talento de exagerar nos sentimentos que são comuns a todos nós, invariavelmente me leva a repensar o porquê do padrão vigente de comportamento na sociedade.
Não farei conjecturas do que nos impele a reprimir muito do que sentimos e não lutar pelo que acreditamos e/ou pelo que está errado no nosso planeta. Minha paciência para discursos vãos e revoltosos se esvaiu no início dos meus vinte anos, hoje prefiro tentar transformar de forma gradual e pacífica através do que faço e acredito, logicamente dentro do possível nesse mundo que já estava corrompido antes de eu nascer.
Dessa experiência nova procuro absorver essa atitude extrovertida essencial para os atores, que será imprescindível em novas empreitadas a que estou me propondo nessa fase da minha vida. Todo mundo tem um papel nesse mundo antagônico, somos protagonistas da nossa própria história e escolhemos o nosso roteiro dentro de normas pré-estabelecidas e traçadas por feitos de grandes e também de medíocres personagens.
sexta-feira, 3 de junho de 2011
NOSSA UNIÃO - baseado em poema de Clarice Lispector
TUDO EM VÃO!
DIGA QUE NÃO FOI
É UMA PENA, MAS
TUDO SAIU DO CONTROLE
ACABOU!
EU SEI QUE NÃO
VOU VOLTAR AGORA
FAREI ISSO POR NÓS
NOS CEGOU
A MÁGOU QUE
CONSEGUIU DESTRUIR
NOSSA UNIÃO.
*Agora leiam o poema de baixo para cima.
DIGA QUE NÃO FOI
É UMA PENA, MAS
TUDO SAIU DO CONTROLE
ACABOU!
EU SEI QUE NÃO
VOU VOLTAR AGORA
FAREI ISSO POR NÓS
NOS CEGOU
A MÁGOU QUE
CONSEGUIU DESTRUIR
NOSSA UNIÃO.
*Agora leiam o poema de baixo para cima.
segunda-feira, 30 de maio de 2011
Mel
Houve uma gota que nunca esqueci. Uma gota de saliva de um beijo apaixonado. Um pingo que brilhava mais forte, fruto de uma salivação não controlada.
Eu era uma criança da quinta série de um colégio pequeno, uma criança normal, queria brincar e esperava com ansiedade a hora do recreio e a da saída. Não que eu fosse um mau aluno, mas a relação com os colegas era (e quase sempre foi) mais interessantes do que as travadas em sala de aula.
Muito me despertava atenção a relação que os meninos mais velhos tinham com as garotas, a forma de cumprimentarem, a abordagem, as brincadeiras, um mundo que a mim parecia proibido e perigoso. Mais tarde descobriria que não estava totalmente errado.
Sempre há os que chamam mais a atenção de todos, cada um por sua peculiaridade. Mas na beleza e no trato com a vida havia particularmente um casal (não que fossem um casal, mas por ser um homem e uma mulher) que me despertava muito a atenção. Ele era moreno, e mais corpulento que os demais da turma, diziam que era campeão da modalidade esportiva que praticava e colecionava troféus.
Ela era, e ainda é, o sonho de qualquer homem. Loira, linda, esbelta e rosto de boneca. Aquele tipo de beleza incontestável, a que qualquer pessoa que se opusesse e empregasse o jargão “gosto não se discute” seria corretamente tachada de invejosa ou de contrariar por birra. Mais tarde, como era de se esperar, tornou-se atriz de sucesso.
Eu, sentado, absorto em meus pensamentos infantis, com a mochila nas costas, pronto para ir embora, pensando nos brinquedos que me esperavam em casa, vivendo, estando, já em modo de ação, como foram deixados quando da última vez brincados, um presente parado, uma história deixada de lado, pronta para continuar, vívida e vivida do jeito que o pensamento gerenciou os movimentos daqueles meus pertences no momento em questão.
A sede dele em dar aquele beijo de despedida nela foi tamanha que da boca dele escapuliu uma considerável gota de saliva que pousou em minha coxa direita, justo quando eu assistia de baixo, sentado com as pernas cruzadas aquelas duas cabeças tamparem a luz ao irem de encontro uma com a outra, e é engraçado como as coisas do amor se interpõem sobre às de criança aos poucos.
Lembro que a sensação pós-gotejo foi de um nojo que eu não deveria sentir, junto com um sentimento de recompensa, por estar ali naquele momento mágico e hoje vejo como um claro sinal. Um sinal do caminho que eu ainda iria percorrer, se mais ou menos que eles não importa, mas sinuosamente similar, de pecados, vaidades, medos e das maiores alegrias. De feitiços, magias e maus olhados. Do jeito que o ser humano tem, fez e se faz, capaz. De tudo. De ser feliz, de dar, e dar o melhor ou o pior de si. É a isso que aquele ínfimo instante me remete até hoje. O mel. O amor, independente da forma que fosse aquele. O querer. Estampado no que é quase oitenta por cento de nós, líquido. Ali, na minha perna, demorei a limpar, contemplei a gota, minha mente infantil já pressentia o que iria viver, a natureza do ser, de quereres.
Não sei quanto tempo fiquei ali, pensando, sozinho, no destino daquele eu infantil, ingênuo, naquele dia nublado de um branco bem claro, como se as nuvens já não suportassem mais a pressão da luz. Na saliva dele, da sede por ela, no casal mais bonito do colégio, que me mostrou muito mais do que as matérias da grade e muito mais do que as grades que nos pareciam, a nós alunos, as notas do boletim.
Não acho hoje insignificante nada do que se referiu à minha formação escolar, mas essas pequenas outras coisas me parecem muito mais significativas, pois eternizam memórias imprescindíveis da natureza nossa, de seres humanos. E a imprecisão de memórias, do que veio depois daquele momento, afirma a certeza da importância desta precisa lembrança que insiste agora em ser história. Esta. Da gota. Do amor. Do mel.
Do futuro pessoal amoroso de cada um dos três personagens não valem considerações. Vale, sim, a metáfora traçada e elaborada tantos anos depois, de uma lembrança, numa uma idade que julgam despida de saberes mais elevados, e que agora me coube narrar.
Eu era uma criança da quinta série de um colégio pequeno, uma criança normal, queria brincar e esperava com ansiedade a hora do recreio e a da saída. Não que eu fosse um mau aluno, mas a relação com os colegas era (e quase sempre foi) mais interessantes do que as travadas em sala de aula.
Muito me despertava atenção a relação que os meninos mais velhos tinham com as garotas, a forma de cumprimentarem, a abordagem, as brincadeiras, um mundo que a mim parecia proibido e perigoso. Mais tarde descobriria que não estava totalmente errado.
Sempre há os que chamam mais a atenção de todos, cada um por sua peculiaridade. Mas na beleza e no trato com a vida havia particularmente um casal (não que fossem um casal, mas por ser um homem e uma mulher) que me despertava muito a atenção. Ele era moreno, e mais corpulento que os demais da turma, diziam que era campeão da modalidade esportiva que praticava e colecionava troféus.
Ela era, e ainda é, o sonho de qualquer homem. Loira, linda, esbelta e rosto de boneca. Aquele tipo de beleza incontestável, a que qualquer pessoa que se opusesse e empregasse o jargão “gosto não se discute” seria corretamente tachada de invejosa ou de contrariar por birra. Mais tarde, como era de se esperar, tornou-se atriz de sucesso.
Eu, sentado, absorto em meus pensamentos infantis, com a mochila nas costas, pronto para ir embora, pensando nos brinquedos que me esperavam em casa, vivendo, estando, já em modo de ação, como foram deixados quando da última vez brincados, um presente parado, uma história deixada de lado, pronta para continuar, vívida e vivida do jeito que o pensamento gerenciou os movimentos daqueles meus pertences no momento em questão.
A sede dele em dar aquele beijo de despedida nela foi tamanha que da boca dele escapuliu uma considerável gota de saliva que pousou em minha coxa direita, justo quando eu assistia de baixo, sentado com as pernas cruzadas aquelas duas cabeças tamparem a luz ao irem de encontro uma com a outra, e é engraçado como as coisas do amor se interpõem sobre às de criança aos poucos.
Lembro que a sensação pós-gotejo foi de um nojo que eu não deveria sentir, junto com um sentimento de recompensa, por estar ali naquele momento mágico e hoje vejo como um claro sinal. Um sinal do caminho que eu ainda iria percorrer, se mais ou menos que eles não importa, mas sinuosamente similar, de pecados, vaidades, medos e das maiores alegrias. De feitiços, magias e maus olhados. Do jeito que o ser humano tem, fez e se faz, capaz. De tudo. De ser feliz, de dar, e dar o melhor ou o pior de si. É a isso que aquele ínfimo instante me remete até hoje. O mel. O amor, independente da forma que fosse aquele. O querer. Estampado no que é quase oitenta por cento de nós, líquido. Ali, na minha perna, demorei a limpar, contemplei a gota, minha mente infantil já pressentia o que iria viver, a natureza do ser, de quereres.
Não sei quanto tempo fiquei ali, pensando, sozinho, no destino daquele eu infantil, ingênuo, naquele dia nublado de um branco bem claro, como se as nuvens já não suportassem mais a pressão da luz. Na saliva dele, da sede por ela, no casal mais bonito do colégio, que me mostrou muito mais do que as matérias da grade e muito mais do que as grades que nos pareciam, a nós alunos, as notas do boletim.
Não acho hoje insignificante nada do que se referiu à minha formação escolar, mas essas pequenas outras coisas me parecem muito mais significativas, pois eternizam memórias imprescindíveis da natureza nossa, de seres humanos. E a imprecisão de memórias, do que veio depois daquele momento, afirma a certeza da importância desta precisa lembrança que insiste agora em ser história. Esta. Da gota. Do amor. Do mel.
Do futuro pessoal amoroso de cada um dos três personagens não valem considerações. Vale, sim, a metáfora traçada e elaborada tantos anos depois, de uma lembrança, numa uma idade que julgam despida de saberes mais elevados, e que agora me coube narrar.
segunda-feira, 11 de abril de 2011
Gustavo - O conto
Reconheci por completo o verdadeiro sentido dessa força que nos une e ao mesmo tempo nos afasta, mas mesmo assim faz-nos sempre querer tornarmo-nos especiais ou peculiares, pros outros e pra nós mesmos. É tão óbvio e parte da intuição que não conseguimos descrever, essa energia vital que existe no mundo, e faz reconhecermo-nos em nossos semelhantes.
Foi no banco de uma praça, de pernas cruzadas, num dia de outono, depois de ter lido as últimas notícias no impresso diário; divagava em pensamentos duvidosos e relutantes quanto ao curso do drama humano e quanto ao meu próprio; pensava nas muitas pessoas que passaram em minha vida, as mais importantes apareciam com o rosto conservado da adolescência, mesmo que hoje fossem velhas, se é que estavam vivas. Lembranças. Agradáveis até. Tive também muitos animais domésticos memoráveis, me espanta até hoje o afeto que eles podem nos proporcionar, e quanto à lealdade, são únicos . As pessoas menos importantes vieram depois em lembranças misturadas, rostos disformes de tempos que não consigo datar.
Conheci muita gente, primeiro devido à minha família, que era grande e festeira, e depois devido ao meu primeiro e único emprego de professor de biologia. Descobri como ganhar dinheiro muito cedo, e como gastar também. Ainda estava com a publicação em punho naquela tarde, quando sentou alguém ao meu lado no tal banco. Dei aquela rápida olhada para o lado direito, e imediatamente meus sentidos reconheceram um rosto conhecido. Percebi que para quem olhasse aquela cena de fora, naquela fração de segundo, assim como o dono da face que eu julgava conhecer e cruzou meu olhar no dito naco de momento, perceberia em minha expressão amuada uma pseudo-posse de um banco público por uso antecipado, e uma expressão de rispidez talvez digna de quem devotou grande parte da existência à busca desenfreada pelo saber, seguida por um desarmamento nos músculos faciais que deu espaço a uma expressão sem exageros de surpresa.
-Gustavo? – eu disse, agora na desvantagem da incerteza.
- Não, não. Respondeu o homem que não era o Gustavo sem aparentar ter-se importado com minha confusão.
E seguiu dizendo oportunamente se eu a propósito poderia emprestar-lhe o jornal que agora repousava em meu colo. Consenti e pedi desculpas por tê-lo confundido. Olhei para o lado e vi crianças dando pipocas para pombas e agora minhas mãos pareciam grandes e eu não encontrava lugar para colocá-las, o mesmo acontecia com meu olhar, que agora parecia algo sólido, como as mãos.
Enquanto o homem que não era o Gustavo lia as notícias da primeira página, com a expressão tranqüila típica das pessoas bem-resolvidas ou das ignorantes, relatei para ele a impressionante semelhança física que ele dividia com meu amigo de infância, o Gustavo, o qual não via à muito tempo. O mesmo bigodinho de espadachim e cabelos escuros no ombro e encaracolados, estilo D´artagnan. Eu estava pasmo com a possibilidade de haver duas pessoas tão parecidas, só que isso eu não disse, mas mesmo tentando disfarçar acho que ficou evidente pelo tom que me referi àquilo, isso supondo que ele não era um ignorante sem senso de exageros tonais.
Eu que nunca fui de falar muito, e nem de me impressionar com qualquer coisa, desacreditado da situação, insisti não satisfeito com um não sei o que:
-Acho que ele mudou para a Espanha...
O primeiro sinal de incômodo se deu sutilmente quando ele leu o título de uma matéria em voz alta: novas descobertas revelam ser possível o teletransporte de moléculas – como quem quisesse cessar uma conversa começando outra, ele olhou pra mim, mas sorriu forçosamente.
Desconcertado só pude dizer:
-É, eu vi isso, puxa! Onde vamos parar assim, não!? – olhei para o lado ainda perplexo com tamanha similitude arregalei os olhos, desvantagem que não sabia explicar o porquê ainda se apoderava de mim, do outro lado as crianças não alimentavam mais as pombas, e agora isso das moléculas.
Se essa máquina de transporte de moléculas já existisse, eu daria tudo pra ir onde estava o Gustavo e trazê-lo aqui, pra ele ver o irmão gêmeo dele. Um sorriso de canto se desenhou em meus lábios quando eu pensei que duas pessoas idênticas poderiam não querer dividir a mesmo período de existência, e no caso deles isso poderia ser resolvido num duelo espadachim. E mais um desses virava logo os três mosqueteiros. Quanta besteira pode pensar um senhor da minha idade. Achariam as crianças de hoje graça nisso?
Ficamos ali sentados, ele lendo, deixei que um pouco de silêncio acalmasse essa estranha situação. E isso me deu algum tempo para pensar melhor. Acabei por me sentir muito próximo dele, devido a tal semelhança. Senti que provavelmente de certa forma ele deveria sentir isso também. Comecei a ter lembranças de algumas situações que vivi junto com o Gustavo. Festas, Reuniões de amigos, nós dois tentando tocar violão, mesmo sem o menor talento para tal. Cheguei a pensar que se ele não era o Gustavo, deveríamos procurar o verdadeiro juntos, e ir a um programa de televisão para mostrar o milagre daquela coincidência genética ao mundo. Ou que ele era o Gustavo tentando me pregar uma peça depois de tantos anos. Se bem me lembro, ele tinha um humor muito peculiar, muita personalidade, e era afeito a esse tipo de brincadeiras esdrúxulas.
Quando ele levantou para partir, batia um vento que arrastava as folhas secas, a praça estava mais vazia. Com um movimento decidido, pôs o jornal ao meu lado e fechou um pouco mais o agasalho na altura do peito, se despediu com a ênfase das pessoas que não são particularmente grandes amigas e virou-se iniciando a caminhada que nos separaria de novo. Olhei para o jornal ao meu lado e depois para um homem já em pé e partindo. A parte de mim que queria a qualquer custo segurá-lo e tentar explicar aquilo que ele não conseguia ver e nem queria, hesitou tempo suficiente para que um novo transeunte se interpusesse entre nós e oportunamente tomasse o lugar que, agora vago, era do Gustavo. Reconheci por completo o verdadeiro sentido dessa força que nos une e ao mesmo tempo nos afasta, mas mesmo assim faz-nos sempre querer tornarmo-nos especiais ou peculiares, pros outros e(ou) pra nós mesmos. É tão óbvio e parte da intuição que não conseguimos descrever, essa energia vital que existe no mundo, e faz reconhecermo-nos em nossos semelhantes. E reconhecer um pouco de cada um em outros. Agora era tarde, puxei o jornal junto a mim e fechei a expressão fingindo ler, sondei em rápida análise a pessoa que agora se apossava do lugar ao meu lado, e ela despertou-me lembrança tão vívida:
-Fernando?
Foi no banco de uma praça, de pernas cruzadas, num dia de outono, depois de ter lido as últimas notícias no impresso diário; divagava em pensamentos duvidosos e relutantes quanto ao curso do drama humano e quanto ao meu próprio; pensava nas muitas pessoas que passaram em minha vida, as mais importantes apareciam com o rosto conservado da adolescência, mesmo que hoje fossem velhas, se é que estavam vivas. Lembranças. Agradáveis até. Tive também muitos animais domésticos memoráveis, me espanta até hoje o afeto que eles podem nos proporcionar, e quanto à lealdade, são únicos . As pessoas menos importantes vieram depois em lembranças misturadas, rostos disformes de tempos que não consigo datar.
Conheci muita gente, primeiro devido à minha família, que era grande e festeira, e depois devido ao meu primeiro e único emprego de professor de biologia. Descobri como ganhar dinheiro muito cedo, e como gastar também. Ainda estava com a publicação em punho naquela tarde, quando sentou alguém ao meu lado no tal banco. Dei aquela rápida olhada para o lado direito, e imediatamente meus sentidos reconheceram um rosto conhecido. Percebi que para quem olhasse aquela cena de fora, naquela fração de segundo, assim como o dono da face que eu julgava conhecer e cruzou meu olhar no dito naco de momento, perceberia em minha expressão amuada uma pseudo-posse de um banco público por uso antecipado, e uma expressão de rispidez talvez digna de quem devotou grande parte da existência à busca desenfreada pelo saber, seguida por um desarmamento nos músculos faciais que deu espaço a uma expressão sem exageros de surpresa.
-Gustavo? – eu disse, agora na desvantagem da incerteza.
- Não, não. Respondeu o homem que não era o Gustavo sem aparentar ter-se importado com minha confusão.
E seguiu dizendo oportunamente se eu a propósito poderia emprestar-lhe o jornal que agora repousava em meu colo. Consenti e pedi desculpas por tê-lo confundido. Olhei para o lado e vi crianças dando pipocas para pombas e agora minhas mãos pareciam grandes e eu não encontrava lugar para colocá-las, o mesmo acontecia com meu olhar, que agora parecia algo sólido, como as mãos.
Enquanto o homem que não era o Gustavo lia as notícias da primeira página, com a expressão tranqüila típica das pessoas bem-resolvidas ou das ignorantes, relatei para ele a impressionante semelhança física que ele dividia com meu amigo de infância, o Gustavo, o qual não via à muito tempo. O mesmo bigodinho de espadachim e cabelos escuros no ombro e encaracolados, estilo D´artagnan. Eu estava pasmo com a possibilidade de haver duas pessoas tão parecidas, só que isso eu não disse, mas mesmo tentando disfarçar acho que ficou evidente pelo tom que me referi àquilo, isso supondo que ele não era um ignorante sem senso de exageros tonais.
Eu que nunca fui de falar muito, e nem de me impressionar com qualquer coisa, desacreditado da situação, insisti não satisfeito com um não sei o que:
-Acho que ele mudou para a Espanha...
O primeiro sinal de incômodo se deu sutilmente quando ele leu o título de uma matéria em voz alta: novas descobertas revelam ser possível o teletransporte de moléculas – como quem quisesse cessar uma conversa começando outra, ele olhou pra mim, mas sorriu forçosamente.
Desconcertado só pude dizer:
-É, eu vi isso, puxa! Onde vamos parar assim, não!? – olhei para o lado ainda perplexo com tamanha similitude arregalei os olhos, desvantagem que não sabia explicar o porquê ainda se apoderava de mim, do outro lado as crianças não alimentavam mais as pombas, e agora isso das moléculas.
Se essa máquina de transporte de moléculas já existisse, eu daria tudo pra ir onde estava o Gustavo e trazê-lo aqui, pra ele ver o irmão gêmeo dele. Um sorriso de canto se desenhou em meus lábios quando eu pensei que duas pessoas idênticas poderiam não querer dividir a mesmo período de existência, e no caso deles isso poderia ser resolvido num duelo espadachim. E mais um desses virava logo os três mosqueteiros. Quanta besteira pode pensar um senhor da minha idade. Achariam as crianças de hoje graça nisso?
Ficamos ali sentados, ele lendo, deixei que um pouco de silêncio acalmasse essa estranha situação. E isso me deu algum tempo para pensar melhor. Acabei por me sentir muito próximo dele, devido a tal semelhança. Senti que provavelmente de certa forma ele deveria sentir isso também. Comecei a ter lembranças de algumas situações que vivi junto com o Gustavo. Festas, Reuniões de amigos, nós dois tentando tocar violão, mesmo sem o menor talento para tal. Cheguei a pensar que se ele não era o Gustavo, deveríamos procurar o verdadeiro juntos, e ir a um programa de televisão para mostrar o milagre daquela coincidência genética ao mundo. Ou que ele era o Gustavo tentando me pregar uma peça depois de tantos anos. Se bem me lembro, ele tinha um humor muito peculiar, muita personalidade, e era afeito a esse tipo de brincadeiras esdrúxulas.
Quando ele levantou para partir, batia um vento que arrastava as folhas secas, a praça estava mais vazia. Com um movimento decidido, pôs o jornal ao meu lado e fechou um pouco mais o agasalho na altura do peito, se despediu com a ênfase das pessoas que não são particularmente grandes amigas e virou-se iniciando a caminhada que nos separaria de novo. Olhei para o jornal ao meu lado e depois para um homem já em pé e partindo. A parte de mim que queria a qualquer custo segurá-lo e tentar explicar aquilo que ele não conseguia ver e nem queria, hesitou tempo suficiente para que um novo transeunte se interpusesse entre nós e oportunamente tomasse o lugar que, agora vago, era do Gustavo. Reconheci por completo o verdadeiro sentido dessa força que nos une e ao mesmo tempo nos afasta, mas mesmo assim faz-nos sempre querer tornarmo-nos especiais ou peculiares, pros outros e(ou) pra nós mesmos. É tão óbvio e parte da intuição que não conseguimos descrever, essa energia vital que existe no mundo, e faz reconhecermo-nos em nossos semelhantes. E reconhecer um pouco de cada um em outros. Agora era tarde, puxei o jornal junto a mim e fechei a expressão fingindo ler, sondei em rápida análise a pessoa que agora se apossava do lugar ao meu lado, e ela despertou-me lembrança tão vívida:
-Fernando?
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